O ex-prefeito de Rio do Sul, José Thomé (PSD), se pronunciou nesta terça-feira (19) após ser citado na sexta fase da Operação Mensageiro, deflagrada na manhã de hoje, pelo GAECO (Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas) e pelo GEAC (Grupo Especial Anticorrupção).
A ação investiga suspeitas de corrupção, fraude em licitações e irregularidades em contratos de coleta e destinação de resíduos sólidos urbanos em Santa Catarina.
A deflagração da Operação Mensageiro e a subsequente investigação envolvendo o então prefeito de Rio do Sul, José Thomé, lançaram uma luz incômoda sobre as práticas administrativas no Alto Vale do Itajaí. O escândalo, centrado em um suposto esquema de fraude em licitações e pagamento de propinas no setor de coleta de lixo, chocou a opinião pública e expôs a vulnerabilidade das gestões municipais a complexas redes de corrupção. Contudo, para um observador atento da história política local, os eventos recentes não representam uma anomalia, mas sim o mais recente e visível capítulo de uma longa e arraigada tradição de má gestão e desvio de recursos públicos.
Cleptocracia municipal refere-se a uma situação em que a corrupção e o roubo sistemático de recursos públicos, praticados por agentes públicos, se tornam a norma no âmbito de um município, levando à deterioração da moral, dos bons costumes, da honestidade e ao enriquecimento de um grupo privilegiado às custas de todo o resto da sociedade. Essa prática se manifesta através de propinas, desvio de dinheiro em contratos, enriquecimento de amigos do poder, lavagem de dinheiro de superfaturamentos e uso de recursos públicos para benefícios pessoais ou de grupos específicos.
Para compreender a profundidade e a resiliência de tais práticas, é imperativo voltar no tempo.
Seção 1: Introdução — A Investigação em Contexto
A investigação sobre a corrupção administrativa na Prefeitura Municipal de Rio do Sul entre 1969 e 1970, não pode ser desassociada do complexo panorama político do Brasil no final da década de 1960. Sob um regime militar autoritário, instituições como a Comissão Geral de Investigações (CGI) foram estabelecidas com o duplo propósito de expurgar a corrupção e reforçar o controle do Estado sobre as esferas políticas locais. A intervenção em Rio do Sul exemplifica esse mecanismo, onde a inércia e a cumplicidade das elites locais foram superadas por uma ação enérgica dos órgãos de inteligência e investigação estaduais e federais. O caso revela não apenas a extensão da malversação de fundos públicos, mas também a fragilidade das instituições políticas locais quando confrontadas com uma rede de interesses ilícitos e parasíticos.
A Gênese da Investigação — O “Manancial Inesgotável de Irregularidades”
A iniciativa para a investigação não partiu de denúncias civis ou de mecanismos de controle locais, mas sim de um abrangente levantamento de inteligência realizado pela 2ª Seção do Estado-Maior da Polícia Militar de Santa Catarina.¹ Em um “Informe” confidencial datado de 11 de dezembro de 1969, a situação na região do Alto Vale do Itajaí, com epicentro em Rio do Sul, foi descrita como um “manancial inesgotável de irregularidades”.¹ O documento apontava para uma profunda “apatia dos círculos políticos” locais, que pareciam incapazes ou desinteressados em conter os abusos.¹
A linguagem do informe é contundente e reflete a visão do regime sobre a ordem política. Afirmava-se que, antes de se considerar qualquer reabertura do processo político, era imperativo “punir aquêles que não souberem usá-la com propriedade e responsabilidade”.¹ A análise da inteligência militar ia além da simples corrupção fiscal, conectando-a a um desvio de conduta política em relação aos padrões impostos pelas “Forças Revolucionárias”.¹ A falta de ação contra os grupos políticos “deteriorados pelo peleguismo demagógico remanescente” criaria, segundo o relatório, uma “imagem distorcida do comportamento do Governo”.¹ Essa avaliação inicial estabeleceu a justificativa para uma intervenção externa, enquadrando a corrupção local não apenas como um crime, mas como uma falha política que minava a autoridade e a imagem do país inteiro.
A Formalização do Inquérito
Em resposta direta aos alarmantes relatórios de inteligência, a Subcomissão de Investigações em Santa Catarina (SCGI), um braço da CGI nacional, agiu para formalizar o inquérito. Em 10 de agosto de 1969, duas resoluções cruciais foram emitidas. A primeira instaurou, ex-officio, uma investigação sumária para a “apuração de enriquecimento ilícito do Sr. Alfredo João Krieck, ex-Prefeito Municipal de Rio do Sul, e outros”.¹ A segunda resolução nomeou uma comissão específica, liderada pelo Capitão-de-Corveta Luiz Romero Jardim Villasboas e por Etienne Arnaldo Douat, com a tarefa de proceder a um minucioso “levantamento contábil na Prefeitura Municipal de RIO DO SUL”.¹
Esses atos marcaram a transição de uma fase de vigilância e coleta de informações para uma investigação formal, estruturada e baseada em evidências. A comissão iniciou seus trabalhos em 14 de outubro de 1969, instalando-se no próprio prédio da Prefeitura Municipal para examinar balancetes, empenhos, contratos e tomar dezenas de depoimentos que formariam a base de seu relatório conclusivo.¹ A estrutura hierárquica do processo — da inteligência da Polícia Militar para uma comissão federal de investigação — demonstra que os mecanismos locais de fiscalização, como a Câmara de Vereadores, haviam falhado completamente, tornando necessária uma intervenção externa para restaurar a legalidade e a ordem administrativa.
Seção 2: O Epicentro da Malversação: Prefeito Alfredo João Krieck
No centro da complexa rede de corrupção desvendada em Rio do Sul estava a figura do então prefeito, Alfredo João Krieck. A investigação da CGI revelou que sua gestão não foi marcada por desvios isolados, mas por um sistema audacioso e multifacetado de abuso de poder, no qual os interesses públicos foram sistematicamente subordinados ao seu enriquecimento pessoal e ao de seus associados. O prefeito operava com uma flagrante desconsideração pela distinção entre o tesouro municipal e seu patrimônio privado, utilizando seu cargo para dirigir contratos, manipular transações e desviar recursos públicos com notável impunidade.
Pichações como “FORA KRIECK” e “PROGRESSO-SIM. CORRUPÇÃO-NÃO.” demonstravam o descontentamento público.
Muro com a pichação “ALFREDO JOÃO CORRUPTO KRIECK”.
Arco da cidade com a pichação “ABAIXO PREFEITO E CIA.”.
Conflito de Interesses e Autocontratação: O Caso ITAVALE
A relação do prefeito com a Empresa de Terraplanagem Vale do Itajaí Ltda. (ITAVALE) constitui um exemplo paradigmático de conflito de interesses e autocontratação. A Prefeitura Municipal iniciou a contratação dos serviços da ITAVALE em 6 de março de 1967, sem qualquer processo de licitação ou contrato formal.¹ Poucos meses depois, em 22 de julho de 1967, o prefeito Alfredo João Krieck tornou-se sócio da empresa, adquirindo uma participação de aproximadamente 43% do capital social.1 A partir dessa data, o volume de negócios entre a Prefeitura e a ITAVALE foi “grandemente incrementado”.¹
Um dos principais projetos concedidos à ITAVALE foi a construção de uma estrada na localidade de “Valada das Canoas”.¹ Essa obra beneficiava diretamente uma serraria na qual o prefeito possuía interesse pessoal.¹ A decisão de construir essa estrada foi tomada em detrimento de uma rota alternativa, via “Valada de Itoupava”, que seria cerca de 40% mais curta, mais econômica e já possuía um trecho aberto pelo município vizinho de Presidente Getúlio.¹ A escolha do trajeto mais oneroso e menos lógico evidencia que o critério para a alocação de recursos públicos não era a eficiência ou o bem comum, mas o benefício privado do gestor.
A fraude se aprofundou com a transação de equipamentos municipais. Uma máquina da Prefeitura, um Tax-Cavator 933, foi trocada por um modelo HT4 reformado, pertencente à ITAVALE. Além de entregar seu equipamento, o município pagou uma diferença de NCr$ 11.000,00.¹ O pagamento, no entanto, não foi feito à empresa, mas diretamente a um dos sócios, Aroldo Menezes de Abreu, sugerindo uma manobra para evitar os registros contábeis da firma e facilitar a distribuição ilícita dos lucros.¹ Menos de um ano depois, a máquina recebida pela Prefeitura foi considerada inservível e vendida por apenas NCr$ 4.500,00.¹ A transação de venda foi igualmente suspeita, sendo o pagamento realizado através da troca por um Jeep usado, pertencente ao sogro de um fiscal de obras da própria Prefeitura, mantendo o ciclo de benefícios dentro de um círculo fechado de insiders.¹
Corrupção Direta e Enriquecimento Ilícito
Além dos esquemas de autocontratação, a investigação revelou atos de corrupção direta e o uso descarado de recursos municipais para fins privados. O depoimento de Emilio Ninow, gerente da empresa fornecedora de material elétrico CORESA, foi devastador. Ele testemunhou que o prefeito Krieck exigiu e recebeu uma comissão sobre uma grande compra de fios de alumínio para a eletrificação rural.¹ Ninow afirmou ter entregue pessoalmente ao prefeito uma propina de aproximadamente NCr$ 3.900,00, uma acusação corroborada por uma relação de cobranças rubricada pelo próprio Krieck.¹ Este ato demonstra uma transição da corrupção sistêmica para a extorsão direta.
O patrimônio pessoal do prefeito também foi construído com recursos públicos. Múltiplos depoimentos, incluindo os dos vereadores Olgenir de Oliveira e de Curt Butzke, um mestre de obras, confirmaram que máquinas municipais (caminhões, carregadeiras) e funcionários públicos foram utilizados na terraplanagem e construção da residência particular de Krieck.1 A operação foi ainda mais audaciosa pelo fato de a casa ter sido construída em um terreno originalmente destinado a um “Centro Educacional” público, em uma transação de compra e venda repleta de irregularidades.¹
A apropriação de bens públicos se estendia a itens menores. A CGI constatou que o prefeito adquiriu máquinas de escrever, um trator e veículos em seu próprio nome, mas com pagamento efetuado pela Prefeitura.¹ Em um ato final de autoconcessão de benefícios, Krieck aumentou unilateralmente seu próprio salário e verba de representação em janeiro de 1969, sem qualquer resolução autorizativa da Câmara Municipal, ultrapassando o valor previsto no orçamento anual. Essa série de atos demonstra um padrão de comportamento kleptocrático, no qual o prefeito agia como se o erário municipal fosse uma extensão de sua conta bancária pessoal.
Seção 3: Uma Rede de Colusão: Principais Beneficiários e Facilitadores
A corrupção sistêmica em Rio do Sul não era obra de um único indivíduo, mas sim o resultado de uma rede de conluio bem estruturada que envolvia figuras-chave do poder legislativo, do setor empresarial e da própria administração municipal. Cada membro dessa rede desempenhava um papel específico, garantindo o funcionamento e a perpetuação dos esquemas de desvio de recursos públicos. A investigação da CGI desvendou essa estrutura, revelando como o poder político foi alavancado para gerar contratos ilícitos e como a burocracia foi manipulada para encobrir os rastros da fraude.
A Família Traple: Poder Político e Contratos Ilícitos
A família Traple, liderada pelo vereador Oldemar Traple, exemplifica a fusão entre poder político e interesses econômicos privados. Oldemar Traple, além de vereador, era funcionário do Departamento de Estradas de Rodagem (DER) de Santa Catarina. Testemunhas descreveram sua “espantosa evolução em sua situação econômico-financeira” durante o período. Partindo de recursos modestos, ele acumulou uma fortuna considerável, incluindo múltiplas residências, uma serraria e uma fábrica de óleo, um patrimônio incompatível com seus rendimentos oficiais.
O relatório da CGI detalhou o modus operandi do clã. Empresas controladas por parentes de Oldemar Traple, como a Alceu Traple & Cia. Ltda., detinham o monopólio do fornecimento de paralelepípedos para a Prefeitura. Essas empresas vendiam o material ao município por um preço superfaturado de NCr$ 0,11 por unidade, enquanto outros fornecedores recebiam apenas NCr$ 0,08.¹ Essa prática de fixação de preços era agravada pela fraude fiscal, já que muitas vendas eram documentadas apenas com “notas simples” ou sem qualquer fatura, dificultando o rastreamento contábil.
A posição de Oldemar Traple no DER era igualmente explorada para benefício privado. O depoimento de Hercílio Corbani, ex-motorista do DER, foi particularmente revelador. Ele testemunhou ter transportado, em caminhões do DER, areia para a construção da residência particular de Traple.¹Corbani também relatou ter visto funcionários e equipamentos do DER, como compressores, sendo utilizados à noite para extrair pedra para o britador particular de Traple, que, por sua vez, vendia o produto final para a própria Prefeitura e para o DER.¹ Como vereador, Traple tinha a capacidade de influenciar a aprovação de orçamentos e fiscalizar obras, ao mesmo tempo em que, como empresário familiar e funcionário do DER, se beneficiava diretamente dos gastos públicos que ele próprio deveria supervisionar.
Ervin Christan: O Monopólio das Obras Públicas
O construtor Ervin Christan funcionava como o principal braço operacional para a execução de grandes obras públicas e, consequentemente, para o desvio de vultosos recursos. Ele detinha um “regime de quase monopólio” sobre os projetos de construção da Prefeitura, incluindo o estádio municipal, muros de arrimo e a residência do juiz, tudo sem a realização de licitações ou a formalização de contratos.¹
A análise contábil da CGI revelou discrepâncias massivas entre os pagamentos recebidos por Christan e seus rendimentos declarados. Em 1967, por exemplo, a Prefeitura lhe pagou NCr$ 25.104,00, mas ele declarou ter recebido apenas NCr$ 205,70, uma diferença que aponta para sonegação fiscal em larga escala e, possivelmente, para um esquema de repasse de propinas.¹ Os preços cobrados por seus serviços eram considerados exorbitantes pela comissão, como os NCr$ 31.531,00 apenas pela mão de obra de um único muro de arrimo, configurando um “evidente enriquecimento ilícito” com a conivência do prefeito.¹
Os métodos de pagamento eram igualmente irregulares. As despesas eram frequentemente justificadas com comprovantes improvisados, incluindo “pedaços de formulários de telegramas” ou notas promissórias pessoais emitidas pelo prefeito Krieck.¹ Essa informalidade deliberada servia para obscurecer o fluxo de dinheiro e dificultar qualquer auditoria. Christan era, na prática, o canal através do qual grandes somas do erário eram convertidas em pagamentos por serviços superfaturados e mal documentados, beneficiando a si mesmo e a seus patronos políticos.
Edgar Piazzera: O Facilitador Administrativo
Se Krieck era o cérebro político e Christan o braço operacional, Edgar Piazzera, ex-secretário do prefeito, era o facilitador administrativo que garantia o funcionamento da engrenagem burocrática da corrupção. Como figura central na administração, Piazzera tinha o poder de processar pagamentos e manipular a documentação para dar uma aparência de legalidade às transações fraudulentas.
A investigação descobriu que a Prefeitura pagou NCr$ 13.952,40 em duplicatas emitidas em nome de Piazzera, um valor quase duas vezes superior ao que a empresa emissora dos títulos afirmava ser a dívida real (NCr$ 7.386,47).¹ O tesoureiro municipal, Cirilo Menelli, testemunhou que Piazzera era o intermediário obrigatório para os pagamentos a fornecedores e que circulavam rumores de que ele recebia comissões.¹ O depoimento mais grave de Menelli envolve o desaparecimento de Obrigações do Tesouro destinadas ao pagamento de dívidas previdenciárias do município. O envelope contendo os títulos foi entregue a Piazzera para depósito bancário, mas ele o retirou posteriormente, e os títulos nunca foram localizados.¹
Em seu próprio depoimento, Piazzera tentou se eximir de responsabilidade, admitindo ter conhecimento de irregularidades, mas alegando ser impotente diante da autoridade do prefeito, que afirmava: “quem manda aqui sou eu”.¹ Contudo, as evidências de seu envolvimento direto em transações fraudulentas e seu papel como guardião do acesso ao tesouro contradizem sua tentativa de se apresentar como um mero observador passivo.
Pichação listando “KRIECK — PIAZZERA — BINGO — TRAPLE — BOLINHA” como “O MAL DE RIO DO SUL”.
Tabela 2: Principais Indivíduos Investigados e Resumo das Alegações

Seção 4: A Mecânica da Fraude Pública
A rede de corrupção em Rio do Sul operava através de um conjunto de métodos sistemáticos destinados a extrair recursos do tesouro municipal e, crucialmente, a ocultar os rastros dessas atividades ilícitas. A análise dos documentos da CGI revela uma estratégia multifacetada que envolvia a falsificação de documentos financeiros, a destruição deliberada de provas e o desvio de verbas orçamentárias. Essas táticas não eram improvisadas, mas constituíam um modus operandi consistente para desmontar os mecanismos básicos de controle e accountability da administração pública.
Documentação Financeira Fraudulenta
A base de todo o esquema era a manipulação da documentação que justificava os gastos públicos. A comissão de investigação encontrou um volume significativo de pagamentos realizados com base em “comprovantes claramente imprestáveis” ou, em muitos casos, sem qualquer documento de suporte.¹ Essa prática permitia que o dinheiro fosse liberado do tesouro sem uma justificativa legal ou verificável. Apenas no ano de 1968, os pagamentos respaldados por comprovantes inadequados somaram NCr$ 50.496,00.¹
Um exemplo flagrante de fraude documental foi a emissão de duas Ordens de Pagamento com o mesmo número (Nº 130), ambas no valor de NCr$ 6.000,00, destinadas à ITAVALE em datas muito próximas e para serviços descritos de forma quase idêntica.¹ Essa duplicidade é uma forte evidência de pagamento em dobro pelo mesmo serviço, uma das formas mais diretas de desvio de fundos.
Obstrução e Destruição de Provas
Para garantir a impunidade, a administração Krieck não se limitou a criar documentos falsos; ela também se empenhou em destruir os registros oficiais que poderiam expor suas atividades. O relatório da CGI menciona explicitamente que seu trabalho foi “bastante dificultado em virtude da não existência dos balancetes dos meses de AGOSTO e SETEMBRO de 1968 que ‘desapareceram’ de circulação”.¹ A ausência desses balancetes mensais, que são documentos-chave para a fiscalização financeira, impediu uma análise completa e contínua das finanças municipais, criando lacunas estratégicas na trilha de auditoria.
A destruição de provas ia além dos relatórios consolidados. Os registros primários de arrecadação de receitas referentes aos anos de 1966 e 1967 também estavam ausentes. Um funcionário da Prefeitura alegou à comissão que vários desses talões haviam sido “queimados” durante uma mudança de arquivos.¹ A eliminação sistemática de balancetes e registros de receita demonstra uma intenção clara de apagar o histórico financeiro da administração, tornando impossível uma reconciliação completa entre o que foi arrecadado e o que foi gasto.
Desvio de Verbas Orçamentárias
Outra técnica central era o desvio de finalidade de verbas orçamentárias. Fundos que eram legalmente alocados para serviços essenciais foram redirecionados para financiar projetos de interesse pessoal ou político do grupo no poder. A CGI concluiu que houve uma clara “malversão de dinheiros públicos”, citando como principal exemplo a construção do Estádio Municipal.¹ As despesas com o estádio, uma obra não prioritária, foram pagas com recursos da verba de “Educação e Cultura”, enquanto a recém-criada faculdade local enfrentava severas dificuldades financeiras por falta de repasses.¹
De forma semelhante, a construção de residências para juízes locais foi financiada com verbas do programa de “CASAS POPULARES”.¹ Essa prática não apenas violava as leis orçamentárias, mas também distorcia as prioridades da administração pública, canalizando recursos de áreas sociais críticas, como educação e moradia popular, para projetos que beneficiavam elites ou serviam como instrumentos de propaganda e prestígio para a gestão.
Tabela 1: Resumo das Irregularidades Financeiras Identificadas pela CGI (1966–1969)
A tabela a seguir, adaptada da seção “Auto de Verificação” do relatório da CGI, quantifica a extensão das irregularidades financeiras. A comissão categorizou as despesas anuais em quatro tipos, revelando a porcentagem do orçamento que era gasta de forma suspeita ou abertamente fraudulenta.

Seção 5: Estudo de Caso sobre Abuso de Poder: A Concessão do Transporte Urbano
O caso da concessão do serviço de transporte coletivo urbano, detalhado no depoimento do empresário Waldemiro Finardi (meu avô), transcende a mera corrupção financeira e ilustra como a administração Krieck utilizava o aparato estatal para perseguir e eliminar economicamente qualquer ator que não fizesse parte de sua rede de controle. A história de Finardi revela a transição do abuso administrativo para a coerção física e política, demonstrando a natureza predatória do poder exercido pelo grupo.
Uma Concorrência Legítima Encontrada com Obstrução
A entrada de Waldemiro Finardi no setor de transporte urbano de Rio do Sul ocorreu por meios legais. Ele participou e venceu uma “concorrência pública” para a exploração das linhas de ônibus da cidade, um empreendimento legítimo que deveria ser protegido pela lei.¹ No entanto, sua vitória representou uma ameaça ao status quo, pois ele era um agente econômico independente, fora do círculo de favorecimento do prefeito.
Documento da investigação que descreve como o prefeito autorizou a empresa perdedora da concorrência a operar, prejudicando o vencedor, Waldemiro Finardi.
A reação da administração foi imediata e hostil. Logo após o início das operações, Finardi foi intimado pelo prefeito Krieck a cessar suas atividades, sob a alegação de que estaria invadindo o trajeto da “Empresa de Ônibus Circular Ltda.”, uma companhia já estabelecida que, a partir de então, passou a operar novas rotas urbanas com horários deliberadamente conflitantes para sabotar a empresa de Finardi.¹
A prefeitura começou a aplicar multas diárias contra Finardi por supostamente não cumprir o itinerário completo, uma exigência que ele argumentava ser impossível devido às péssimas condições das estradas — um problema que a própria prefeitura se recusava a solucionar, mesmo após Finardi oferecer seus próprios tratores para realizar os reparos gratuitamente.¹
Pichação “ÔNIBUS SIM — CORRUPÇÃO NÃO” em um arco da cidade, refletindo a controvérsia do transporte público.
A Escalada para a Repressão Estatal
Quando o assédio administrativo se mostrou insuficiente para forçar Finardi a desistir, a administração recorreu à força bruta do Estado. A perseguição atingiu seu clímax quando, durante um protesto de usuários de sua linha de ônibus, Finardi foi preso e agredido fisicamente (“esbofeteado”) pelo Delegado de Polícia, Dr. Heitor Luiz Sché — um funcionário que, conforme apontado em outras partes da investigação, também recebia pagamentos da prefeitura.¹ Finardi foi então transferido para Florianópolis e detido por trinta dias nas dependências do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), um órgão de repressão política do regime militar. Durante sua detenção ilegal, um agente tentou coagi-lo a vender sua empresa para a concorrente.¹
Este episódio é crucial, pois demonstra a fusão da corrupção administrativa com a repressão política. A máquina de segurança do Estado, incluindo a polícia local e o DOPS, foi mobilizada não para garantir a lei, mas para esmagar um concorrente econômico do grupo que controlava a prefeitura. A experiência de Finardi ilustra que o objetivo da rede de Krieck não era apenas o enriquecimento, mas a manutenção de um monopólio de poder, eliminando qualquer forma de independência econômica ou desafio à sua autoridade.
O Epílogo: Ruína Financeira e um Futuro Incerto
A campanha de perseguição atingiu seu objetivo. Pressionado financeiramente e fisicamente, Waldemiro Finardi foi forçado a encerrar suas operações, resultando em sua ruína financeira, com prejuízos estimados em NCr$ 70.000,00 apenas na aquisição dos ônibus.¹

Ônibus que tiveram que ser vendidos, mesmo com o financiamento deles tendo sido feito por Waldemiro Finardi a custo de altos juros em um ambiente de hiper-inflação. Os ônibus da foto são modelos com chassi Mercedes-Benz LP-321. Este chassi foi fabricado no Brasil entre 1958 e 1970.
Seção 6: Falha Institucional e Conclusão
A investigação da CGI em Rio do Sul expôs mais do que os crimes de indivíduos; ela revelou uma profunda falha institucional, onde os mecanismos de freios e contrapesos, essenciais para a governança, foram completamente neutralizados. A cumplicidade da Câmara de Vereadores foi um fator crítico que permitiu que a corrupção florescesse sem qualquer fiscalização eficaz, transformando a administração municipal em um sistema de governo capturado por interesses privados.
A Cumplicidade da Câmara de Vereadores
O Poder Legislativo municipal, que detém o dever primordial de fiscalizar os atos do Executivo, abdicou de sua função em Rio do Sul. O relatório da CGI é categórico ao afirmar que a “Câmara Municipal de Vereadores… oficializou várias delas [irregularidades] e não pode, em hipótese alguma, alegar ignorância dos fatos, pois os balancetes aprovados pelos edis de Rio do Sul desmentiriam tal afirmativa”.¹ A aprovação contínua de balancetes mensais repletos de pagamentos irregulares e sem comprovantes serviu como um selo de legitimidade para a fraude.
Depoimentos de vereadores da minoria, como Joaquim Santana, pintam o quadro de um legislativo dominado por uma maioria “totalmente submissa ao Prefeito”.¹ Santana detalhou como alguns vereadores estavam diretamente comprometidos, atuando como secretários informais do prefeito ou tendo interesses comerciais que os impediam de agir com independência.¹ As atas das sessões confirmam essa dinâmica: os balancetes irregulares eram aprovados repetidamente, apesar dos votos contrários e das declarações formais de voto de uma pequena oposição que registrava suas denúncias para a posteridade.¹ Essa submissão transformou a Câmara de um órgão de fiscalização em um instrumento de ratificação da corrupção.
Conclusão: Um Sistema de Governança Capturada
Em suma, os eventos em Rio do Sul entre 1966 e 1969 não representam uma série de atos de corrupção isolados, mas a consolidação de um estado capturado em nível municipal. O Poder Executivo, membros influentes do Poder Legislativo e elites empresariais locais formaram uma rede simbiótica dedicada à extração sistemática de recursos públicos para benefício privado.
O caso serve como um estudo exemplar da mecânica da corrupção sistêmica. Ele demonstra como a neutralização dos mecanismos de controle — especialmente a fiscalização legislativa sobre o executivo — é a vulnerabilidade crítica que permite a uma cleptocracia se instalar e operar. A investigação da CGI, embora eficaz em documentar a extensão da malversação, também sublinha a dependência de forças externas para a responsabilização em um contexto onde as instituições políticas locais falharam por completo.¹
A história de Rio do Sul, portanto, permanece como uma lição contundente sobre as consequências da falha institucional e do abuso de poder. Ela revela como, na ausência de uma fiscalização vigilante e de uma oposição política robusta, a administração pública pode ser pervertida de sua finalidade de servir ao bem comum para se tornar um mero instrumento de enriquecimento ilícito de poucos.
É realmente uma pena que isso continue a acontecer nos dias de hoje.
1. Fontes retiradas do arquivo nacional:
- BR_DFANBSB_1M_0_0_6889_d0018de0025.pdf
- BR_DFANBSB_1M_0_0_6889_d0019de0025.pdf
- BR_DFANBSB_1M_0_0_6889_d0020de0025.pdf
- BR_DFANBSB_1M_0_0_6889_d0021de0025.pdf
- BR_DFANBSB_1M_0_0_6889_d0022de0025.pdf
- br_dfanbsb_zd_0_0_0014b_0079_d0001de0001.pdf
- BR_DFANBSB_1M_0_0_6889_d0016de0025.pdf
- BR_DFANBSB_1M_0_0_6889_d0017de0025.pdf
- BR_DFANBSB_1M_0_0_6889_d0011de0025.pdf
- BR_DFANBSB_1M_0_0_6889_d0012de0025.pdf
- BR_DFANBSB_1M_0_0_6889_d0013de0025 (1).pdf
- BR_DFANBSB_1M_0_0_6889_d0013de0025.pdf
- BR_DFANBSB_1M_0_0_6889_d0014de0025.pdf
- BR_DFANBSB_1M_0_0_6889_d0015de0025.pdf
- BR_DFANBSB_1M_0_0_6889_d0018de0025.pdf
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